12.9.10

 

CONTOS


Conto de 2011, elaborado durante oficina literária com o escritor Luiz Ruffato.


Vertigem submersa


Alagamento, tempestade, cheia, dilúvio, enchente, enxurrada, enxurro, inundamento, inundação, tsunami, pé d’água, mãos n’água, cabeça e pensamentos quase e o nosso MEU corpo com sede de não ceder sua sede e ser submarino submerso.
NOSSO?
Você ainda não está!
Você é privilegiado!
Você não está cumprindo a sua missão.
A nossa missão.
Você NÃO somos NÓS!
Você tá escapando, querendo evaporar, tentando escorrer de nós, da chuva, chuva, chuva que não para, continua, estronda, não seca nunca essa paisagem ré-secada de imagens levadas, lavadas e lavradas pela tempestade que pinga, respinga, transborda sempre, mas...
Desde quando?
Num longínquo começo do qual já nos esquecemos, não queremos nem lembrar, de nós nos dista e dita insistente: alagar a memória, alargar os medos cheios de receios, trair a confiança que não cabe em nós de tão pequena que pelos poros suores não purificados transformados em mais água pra que mais ÁGUA??? se foi.
Quase tudo se foi.
Menos nós que insistimos em ficar, sobreviver aqui neste não-lugar que nunca é fixo, move-se em redemônios moinhos que nos removem de tentar qualquer coisa anos-luz próxima do que seria esquina esquiva de vida normal.
Acho que devemos insistir.
ACHO???
Você não acha nada! Você deveria nos guiar por certezas, caminhos, atalhos, saídas quaisquer que fossem menos aqui é que não dá pra ficar, fincar raízes que sairão da terra junto com árvores que recaem sobre nossas cabeças quase entupidas dessa água-inferno que gela e arde o alarde de esperanças tão desesperadas de esperar.
Devemos nos dividir em grupos.
Cada grupo deve ir pra algum lugar.
Devemos?
Grupos?
Não somos “grupos”, somos um GRUPO que em alguma maldita hora dessa meia-noite inteira sem fim fez você achar você acha e se acha muito que tinha algum poder sobre nós.
Mas que poder é esse que nada pode?!
Vai se fuder!
Você nunca foi-será nosso líder de porra nenhuma se nem dessa merda de chuva consegue nos tirar.
Por que só nossas casas que já não eram lares nem ares de cubículos menores que gotículas de zilhões que nos levaram tudo?
Precisamos manter a calma.
Ordenar pensamentos.
Ordenhar rudimentos.
Calma é o caralho, seu filho da puta de merda que se tivesse rebentos outros arrebentados da puta de merda como você morrendo como os nossos lagrimaria sangue, revermelhando o refluxo da enxurrada toda menstruada.
Vocês não chegarão a lugar nenhum assim.
Vamos manter os bons modos.
Você e os bons modos que se danem; nós já ligamos o “modo foda-se” e se fôssemos ótimo que não somos você ficaríamos ligados pra não nos apagarem nesta madrugada sem luz.
Há infiltrados (de novo essa maldita infiltração embolando e embolorando tudo) no grupo.
Devemos dar uma chance a ele.
QUEM-é-você-pra-falar-por-ele?
Pior! Quem é você pra falar por NÓS???
Já não somos UM grupo.
Meros indivíduos divididos e desintegrados que se arrastam deixando membros e membros dos membros por este caminho só água e corpos sem pontes, viadutos ou vales que nos valham.
Precisamos nos unir de novo.
Um dia fomos um povo que, por piores que fossem nossas desgraças, tínhamos graça antes da paga dessa praga impagável que não se apaga em nós.
E mania de sempre clamar nunca mais.
Nunca se contentar com o pouco quase nada que nos davam, julgavam, jogavam, polvilhavam num povo porco coberto de milhares de migalhas de pão e cerca.
Quer agora que acreditemos em você?
VOCÊ nos traiu!
Sendo você o tempo inteiro, des-sendo nós e nos descendo à tormenta cheia de chuva e falta de ar, glub-glub, ar, sufoco, ar, ar-oxigênio, vertigem, glub-glub-glub, cadê o ar, ar qualquer coisa, ar rareando, rarefeito, maldito AR?
Esses-nossos corpos sobrepostos já se sobressaem a nós.
Éramos tantos que tontos não nos demos conta de que não contávamos mais conosco.
Muito menos com você!
O que você vai fazer?
O que tá fazendo pra desfazer essa praga rogada, cuspida, escarrada naquilo que éramos nós antes dessas mortes que tsunamam nossas almas e mentes?
EI! Estamos falando com você!
Tá aí?
Você ainda somos nós?
NÃO!
Desisti de ser eu.
E, pior, cansei de ser vocês e não aguento mais esse nós insuportável, carente, troço pegajoso, impessoal, oco ogro de ocres companheiros que precisam ladear-se pra apoiar suas fraquezas, relativizar seus defeitos absolutos, incentivar os fracos, reprimir os fortes e tornar mais medianos os medíocres.
Quero que VOCÊS e eu junto morram!
Afogando-se na própria incompetência declarada e derramada.
“Nós” não existirá mais, nunca existiu nas suas vãs insistências de parear ímpares, semear acordos desacordados, reunir forças que se esforçam em se anular e despersonificar pessoas que há muito não sabem o que é ser um, muito menos ser humano.
Nós só queríamos saber o PORQUÊ.
Porque “nós” sempre foi uma invenção de vocês.
Vocês inventam o vento da mentira o tempo todo.
E o tempestuam em si.
Agora mesmo estão aí.
Brincando de ainda existir.
De serem nós quando já não somos nenhum.






Um lance de pele

(1993?)







- Nome: José Adriano.
- Filiação: João Antonio dos Santos e Maria José dos Santos.
- Natural: Mamanguape (PB).
- Olhos: pretos.
- Cútis: laxa. Laxa??? Sim. Cutis laxa (pela milionésima vez): doença-pavorosa-rara-e-incurável-que-causa-o-envelhecimento-precoce-da-pele.

Pavorosa, porque só quem sofre de cutis laxa sabe como é. Um médico (que obviamente não tinha cutis laxa) quis me confortar afirmando que, por não ser maligna, ela causava “apenas uma depreciação estética”. Apenas uma depreciação estética, respondi, é o que deve ser a senhora sua mãe!

Rara, porque no Brasil não se tem notícias de outros casos além da minha família (daria tudo pra não ter essa exclusividade). Minha mãe, bondosa de tudo, a transmitiu a mim e a meu irmão.

Incurável, porque cirurgias plásticas não adiantavam. Nem o Pitanguy quis tentar. A pele voltaria ao normal (no caso, ao anormal) em menos de seis meses. Mas, mesmo que resolvesse, pobre de Mamanguape tem dinheiro pra Pitanguy? Espere, afobado leitor, espere...

Por que precoce? Não, não ia esquecendo. As centenas de rugas enraizadas no meu corpo não me deixam esquecer. Precoce porque aos nove anos de idade eu parecia ter cinquenta. Não fossem minha estatura e certa inocência no olhar (naquele tempo ainda era inocente), todos me dariam uns quarenta anos a mais. Quem tem cutis laxa, brincava minha mãe, já nasce aposentado. Mas ela não brincava. Dizia que papai se juntou a ela por pena. Ou porque era a melhor cozinheira da cidade. Na gravidez, difícil apontar quem tava mais grávido: ela ou ele.

Panças e comilanças à parte, com o tempo ele foi ficando triste como cada um de nós. Tempo... Essa palavra era proibida lá em casa. Folhinhas de calendário, então, nem pensar. Também não tínhamos espelho. Nem sol. Sol era um astro inexistente pra nós. A mínima exposição aos raios solares – um dia experimentei esse soturno prazer – e minutos de alegria se transformavam em anos de envelhecimento. Trocávamos o dia pela noite. Éramos boêmios não por opção, mas por obrigação. Por fim, não tínhamos amigos. As crianças da vila achavam que nossa doença era contagiosa. Os adultos, embora soubessem que não era, não se arriscavam.

Entre as pouquíssimas visitas, a maioria era de pessoas de outros vilarejos, curiosos em conhecer o que o povo chamava de “os pés-na-cova”. Mamãe, briosa que só, não dava o braço a torcer; mesmo porque isso só aumentaria as rugas. Vestia a si e a nós dos pés a cabeça. E da cabeça aos pés, reconferindo tudo. Calor que fosse. Os curiosos, frustrados por terem visto pouco da aberração que queriam e pela áspera receptividade de mãinha, logo se apoucavam.

Naquele dia, porém, teve um que amanheceu, tardou, anoiteceu e se negava a ir. Nem aí pras caras cada vez mais carrancudas de dona Maria. Fazia uma pergunta atrás da outra. Dizendo-se jornalista, implorou pra tirar uma foto nossa pra que milhões de pessoas da cidade grande nos conhecessem. Não sabíamos direito ainda o que era foto, mas a simples menção de “milhões de pessoas” deixou mamãe apavorada. Teimoso, argumentou que a matéria faria todo mundo se conscientizar do nosso problema e nos ajudar. Embora não conhece bem o que significava ajuda, mãe tirou nossas ataduras e concordou. Erro fatal.


Crianças-múmia de Mamanguape 
aparentam 500 anos


O jornal esgotou a tiragem e nossa paciência. Dia seguinte milhares de abutres vieram urubuzar a gente. Viramos atração turística de Mamanguape. A prefeitura cobrava por visita – o dobro se fosse com fotos – e precisou dar senhas pra organizar as filas. A vizinhança, que nunca nos dera nem bom dia, agora lucrava com as barraquinhas de comida em frente ao nosso casebre. Sem poder cozinhar por causa das fotos, dona Maria aceitava a contragosto as sobras da “festa”. Papai, transpirando vergonha e sem a comida de mãe, nos abandonou e a trocou por uma rapariga de pele lisinha e uns 900 anos a menos que ela.

Quando achávamos que tudo estava perdido, venho um médico que mudou minha vida. Prometeu que ia estudar o caso, fazer pesquisas, estudos sobre nossa alimentação e dar toda a assistência necessária. Pagaria até cirurgia plástica, se preciso (lembra?). Mas queria levar um de nós pra cidade grande, pois ali não havia as mínimas condições necessárias. Quem tem cutis laxa, como falei, não possui muitas coisas, incluindo “as mínimas condições necessárias”. Mas amor uns pelos outros tínhamos demais. O que nunca me fez entender por que mamãe aceitou. Fui escolhido por ser o mais novo e com mais chances de me curar. E de voltar pra estender a cura à família. Na despedida, os outros tristes dela me diziam algo que só depois fui entender.

Na cidade enorme de grande, conheci a vida. E resolvi estudar. Escolhi supletivo por duas razões: me formaria mais rápido (tempo, tempo, tempo) e aprenderia com pessoas da minha idade; ou que pelo menos aparentassem minha idade. Lia muito. Sonhava ser médico. Dermatologista, como o que me apadrinhou. Só me preocupava que ele nada descobria sobre a cura pra nossa doença. As pesquisas não evoluíam. Ao contrário da sua cirrose hepática – o remorso foi um convite ao alcoolismo –, que de súbito causou sua morte. Perdi o padrinho, a casa, a escola e a esperança.

Por sorte, aconteceu outro milagre: um publicitário que havia visto minha foto no jornal me convidou a fazer uma campanha prum creme “revolucionário”. Apareceria testemunhando que, ao invés do Brotox®, eu tinha passado o produto da concorrência. Desnecessário dizer que o comercial teve sucesso estrondoso e a empresa fez um grande contrato comigo.

A vida parecia, enfim, melhorar. O dinheiro me proporcionava quase tudo: casa, comida, lazer, roupas das melhores marcas pra eu me cobrir dos pés a cabeça e status. Não há aberração que resista as melhores grifes. Só não proporciona o que mais queria: fazer amor com alguém. Mesmo pagando, não conseguia. Ficava tenso. Morrendo de vergonha do meu “corpo”. Pra piorar, as sacanas ainda sussurravam no meu ouvido: “relaxa, meu bem, relaxa”. Eu queria morrer. Não podia relaxar. Cutis laxa.

Quando a concorrência ganhou o processo que exigia o fim da campanha e reivindicava um ressarcimento milionário, perdi de novo a grana, a casa, as grifes, o respeito e quase as pregas. A agência queria me processar por eu ter dado esse golpe que quase arruinou as finanças da empresa.

Voltei a Mamanguape. Sem o dinheiro e a cura que sonhava e com a vergonha estampada no meu rosto mais do que as rugas.

Minha mãe e meu irmão tinham sido escorraçados da vila. Passado o alvoroço dos curiosos com a reportagem das múmias, o povo os culpou pelo tremor de terra que rachou as casas. Diziam que era culpa deles. Os enviados do demo. Ninguém sabia do paradeiro deles ou se estavam vivos. Antes de ir, aposto que dona Maria, lá no fundinho, pensou: agora vocês sabem como é estar toda rachada por dentro.

Trabalhei, encapuzado, de vigia num bordel mequetrefe afastado da vila. Me deixavam dormir na casa do cachorro.

Vivia muito só até que encontrei a mulher dos meus sonhos. Ela, por ser a guenga mais feia e rejeitada de lá, decidiu unir sua humilhação à minha. Ou talvez tenha gostado do meu caráter. Além da doença, mamãe me transmitiu integridade; e esta não se degenera. Ou quem sabe tenha sido um lance de pele. Não sei.

A verdade é que com ela eu era uma pessoa normal. Não tinha vergonha e me sentia bem. Sim, consegui o que você está imaginando, precoce leitor. Consegui! A felicidade transpirava pelos meus poros.

Casamos e vivemos como carne e unha. Até o emprego ela largou por mim; mesmo porque, não ganhava quase nada.

Isso, antes de ela morrer, em poucos meses, de câncer de pele.

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